sexta-feira, 20 de abril de 2012

Esquecimentos

Ela ainda se lembra. Gostava de ir a escola com uma bermuda jeans, a qual dobrava a barra para encurtar. O curto de sua bermuda é o longo das meninas de hoje, mas ainda assim a inspetora de alunos uma vez a fez desdobra-la. De sempre dobrados as duas partes do jeans tinham cores desiguais, e aquilo pra ela era puro constrangimento. De tanta pressa em sair para o páteo e dobrá-los de novo, caiu do último degrau com ambos os jooelhos ao chão. Nunca foi de dobrar os joelhos, mas sempre tinha pressa.

Lembra do cheiro de dama da noite, do rádio que ouvia junto à Lua, do pensamento longe, da fantasia de dominar os ventos, da expectativa em vê-lo, do medo do beijo. Ele era pouco mais alto, pouco mais velho - o que pra idade era muito -, tinha a pele morena e um jeito tipico latino de malícia e sedução. Suas mãos eram espertas e sempre encaixadas, e sua boca macia, muito, e quente. Usava aparelho nos dentes, ela tinha vontade de senti-lo com a língua, mas tinha medo - só depois de adulta foi realizar essa fantasia de circular a língua por um aparelho dentário. Nem sempre ia vê-la, nem sempre ela lhe dava atenção, mas até hoje o cheiro de dama da noite a excita.

E pensava nisso enquanto a taça de vinho branco esvaziava-se: no tempo! Vivia do tempo, em combate-lo, em distrai-lo, em não dar-lhe descanso. Estava cansada. Por debaixo da mesa de jantar de vidro via o tapete cru, o piso claro, e ao seu redor um silencio clean de luz branca e fria. Sempre se reconfortou no espaço vazio. Ela deixou tudo à mesa, prato, taça, revista, e foi escovar os dentes. Ele não, dobra o jornal, retira se prato, enxagua, põe na máquina, pega novamente o jornal e senta-se novamente em sua cadeira na sala de jantar. Do quarto ela parece vê-lo, muito alinhado em seu roupão verde, e mocassim nude de couro macio e aveludado. É um homem limpo, alto e estreito. Ela não entendia muito bem como se casou com um homem de óculos de armação grande e de grife, muito menos como se tornara um mulher de pijama risca de giz e pantufas. Odiava pantufas, mas naquela noite quis fazer amor sem tira-las.  

Ele a conhecia, sabia, não errava. Ela se sentia como um mapa na mão de um cartógrafo, estava descoberta, exposta, e aquilo também era seguro. Era bom saber-se entendida e dominada, não lhe passava pela cabeça ser desbravada como terra de ninguém. Tinha nome, classificação e um standard cravado em seu monte.  Olhou para o teto branco, as paredes brancas, gemeu contorcida, determinando-se em pinta-las. Um centímetro de ponto preto em movimento na quina da parede a estarreceu. Uma aranha. Não, uma aranha capturando uma mosca. Não, não era possível, também não era possível que seu quarto fosse âmbar, mas aquilo não saía de sua vista. Quando por fim gozou, sentiu pena da mosca já fechada em casulo, mas era linda sua aranha. Não, não mudaria a cor das paredes de seu quarto, mas adoraria lâmpadas novas. Por fim, tirou as pantufas e sossegou-se. Dormiu esquecendo mais um tempo que ía.


quinta-feira, 12 de abril de 2012

Passagem

Gosto de gostares, poucos, e um dos meus gostos é estar no metrô da Sé ou da República umas 23h30. Ontem o fiz, na Sé. Me faz lembrar coisas que fiz e não faço mais, coisas que fui e não mais sou. É um momento e horário em que gosto de ver gente, são interessantes: os estudantes que voltam pra casa, as namoradas que se despedem nas baldeações, a galera que volta dos happy hour nos barezinhos GLS levemente over encantadores dos quais até sinto falta, conversas, cansaços gostosos... Gente muito boa a galera do metrô da Sé às 23h30.

Curiosamente, sempre tem uma despedida lésbica em alguma escada ou entrada de vagão. Um desses beijos curtos, mas honestos, que me fazem sempre olhar fixamente. Ainda não sei muito bem o motivo: cumplicidade, curiosidade, surpresa, inveja, reprovação. Nunca beijei assim em público. E ao escrever nunca, até parei pra pensar melhor no assunto. Nunca? E continuo aqui pensando, mas não, acho que não, acho que me dei por satisfeita em beijar em bares, sem contar que minha mãe acha que intimidades assim, gay ou hétero, são desnecessárias em público.

Então eu olho! Aliás, olho tudo: o jornal do cara ao lado, presto atenção descaradamente na conversa alheia, leio junto as mensagem no celular. Sempre fui fácil de distrair, todas as professoras em reunião com os pais diziam isso, e sou assim até hoje. Divago ao menor sinal, durante aulas, durante conversas, escrevendo, divago nas divagações. Mas divagar durante conversas sempre foi o pior: ouço, ouço, ouço e ouço nada, de repente uma palavra-chave que me puxa de volta e eu: não entendi, repete essa parte!!! Não é digno, claro, mas sou eu. Pior quando a história se conclui e fica aquele segundo de silêncio onde se espera minha opinião: as vezes sou um vazio honesto e óbvio, outras sou uma tangente inteligente, o que e fácil, pq parece que os assuntos são os mesmos, o mundo gira em torno de si e sempre volta. Pelo menos me mantenho fisicamente disponível: outro dia vi um amigo começar a girar uma bolinha de gude na mesa, durante um atendimento, e fiquei aliviada em ver que não sou um caso perdido.

No final das contas, ontem me dei conta que adoraria trabalhar a noite. Sair para trabalhar às 23h30 via Metrô da Sé, ver pessoas e suas mochilas cheias de expectativas, as lesbiquinhas cada vez mais jovens cheias de amor e atitude, e voltar pra casa no fim da madrugada, quando o metrô reabre, os encapados matrix voltam das baladas, os meninos se recostam, os pálidos conversam, e os cosplayers circulam sem serem notados. É em momentos assim que sinto vida entrar pelos pulmões.

É, amo São Paulo!