sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Tráfico Humano

"Você não sente, não vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo...". Em Velha roupa colorida, Elis Regina assim cantava sobre o tempo que passa, a renovação de idéias e atitudes, o rejuvenescimento. Mas a frase também cai muito bem para falarmos das mazelas que ficam, das discriminações arraigadas, da subjugação.

Para boa fluidez da discussão, antes de tudo, vale a apresentação da definição de tráfico, conforme o 2º Protocolo de Palermo: "É o recrutamento, transporte e tranferência, abrigo e guarda de pessoas, por meio de ameaças, uso da força ou outras formas de coerção, abdução, fraude, enganação ou abuso de poder ou vulnerabilidade com pagamento ou recebimento de benefícios que facilitem o consentimento de uma pessoa que tenha controle sobre a outra, com propósitos de exploração". Isso inclui, no mínimo, a exploração sexual, trabalho de serviços forçados, escravidão de práticas similares à escravidão, servidão ou remoção de órgãos.

Não se trata apenas de um sequestro não consentido. Trata-se do uso da pobreza, da subjugação feminina, dos sonhos de uma vida de deslumbres, para ludibriar pessoas hipossuficientes, colocando-as em situação de risco, humilhação e subumanidade. Vemos em contos infantis o sonho de Cinderela, que de escrava se torna o amor de seu príncipe encantado. Vemos em filmes Hollywoodianos a prostituta que se torna esposa do ricaço, educado e lindo. Vemos em novelas a pobre realizar o “sonho americano”. Sonho! É através desse sonho tão enraizado no imaginário feminino, em nossa educação – ou adestramento – que a exploração sexual, a escravidão, se faz tão vitoriosa. Sim, porque o consentimento em ser explorada sexualmente existe. Porque existe a fantasia da descoberta do amor na adversidade, da vitória no revés, de um mundo de facilidades, oportunidades e sorte. Aceita-se ser prostituta, sim, como se dali se abrissem portas para um mundo de felicidades e conquistas. Nenhuma imagina a violência, a exploração à escravidão. Ninguém imagina que deixará de ser humano, digno, com visibilidade. Não se projeta que, explorada sexualmente, deixa-se de ser mulher.
Daí as causam da exploração sexual comercial. E fácil entender por que o Brasil é o maior exportador de mulheres e crianças do gênero feminino nas Americas. É uma questão de oferta, procura e oportunidade:

Temos uma miséria latente e escancarada, em níveis endêmicos. No Brasil a má distribuição da riqueza cria uma violência social sem retorno. Uma violência silenciosa, onde a ostentação ridiculariza o sofrimento de quem anda em ônibus lotados, de quem não toma café da manhã como as famílias dos comerciais de margarina, ou de quem sofre em filas de Hospitais Públicos. Uma ostentação que dita o que é bom, o que é belo, o que devemos consumir e desejar. E que nos escancara que não somos gente se não somos consumidores. É essa ostentação de riqueza, de valores de consumo deturpados que cria a fantasia de que é melhor ser “puta e ter dinheiro” do que continuar não sendo gente. Se prostituta é mercadoria, pobres também são. A pobreza desumaniza.

Têm-se oferta, muito mais temos a procura. Europeus homens, norte americanos homens, são homens. Homens que pagam. Homens que querem nosso “produto exótico”. Homens criados para serem homens: entender a mulher como produto de consumo e posse. Possuem as suas esposas e filhas e consomem as filhas de quem não tem voz, vontade, humanidade. A exploração sexual de mulheres e crianças é tão comum aos homens justamente por não serem sua posse, por não serem vistas como humanas ou iguais, por não merecerem dignidade.

A oportunidade! Onde se aprende a ser menos, a desumanizar-se, a desejar o consumo do que não é preciso nem possível comprar, onde sonhos de Cinderela são ensinados, onde prostitutas são heroínas de filme e o “sonho americano” é possível e fácil, é simples convencer uma mulher a aventurar-se no mundo do “glamouroso” da prostituição sexual. Quem vai pensar na escravidão, no sofrimento, no nojo, na dor? Num país que não acredita no tráfico de pessoas, por que não ter sequestros infantis? Num país que não enxerga o sofrimento de seu próximo, por que não explorar, coagir, forçar, ameaçar, convencer, ludibriar? Num país com tantas pessoas desumanizadas à venda, por que não comprar?

Claro que o Brasil é campeão na exportação de mulheres e crianças para exploração sexual. Somos um país que finge que cuida, que vê – e que não vê -, que finge que investiga, que protege, que tem políticas públicas, que ama seu próximo, que é racialmente democrático, que todos são iguais perante a lei, que temos direitos, oportunidades e dignidades. O Brasil é um país de fingimentos. Um país que deliberadamente produz a mercadoria sexual, as condições de consumo, que abre suas portas – ou mesmo suas pernas – em troca de lucros milionários com turismo. O Brasil das mulatas, do carnaval, do miserável, do submisso, do invisível. O Brasil puteiro do mundo. O Brasil onde tudo pode acontecer, inclusive nada!

Um comentário:

  1. Falou td, Vidal! A revolução burguesa foi tão bem sucedida que todos pensam no "liberté, egalité, fraternité" para com seu espelho.No Brasil, esse terrorismo sexual é cartão de visitas.A declaração recente de Robin Williams não foi uma piada, mas uma constatação.Mais uma, aliás.O problema está na diminuta lista de oportunidades proporcionada à população.Esse é um o tipo de exploração mais fácil de ser percebido e sentido. Aqui, em SSA,qd vou à praia,ao Pelô...pontos turísticos que, inevitavelmente, estão cheios de gringos.Eles olham pra nós(mulheres)cm se fóssemos frango de padaria.Conversam entre si,entre todos,apontam,desenham silhuetas,cm separando qual parte agrada mais a cada um.O nojo se faz tão claro aí que é dificil até imaginar cm alguém consegue se deixar iludir qt ao que virá depois.
    O pior é saber que o desespero dessas mulheres e crianças é bem anterior ao horror q estão passando. É o despero de um ser humano frente a um presente inócuo e a um futuro quase inexistente.E nós? O que fazermos contra isso? Contra esses inúmeros abusos praticados todos os dias?O que todos e cada um podem fazer para reverter ou amenizar esse quadro? Sinceramente, eu não sei.

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